INFORMAÇÕES SOBRE ÁLCOOL

O QUE É O ALCOOLISMO?
Historicamente, a humanidade e o álcool há muito caminham juntos. Sabemos que a cerveja começou a ser fabricada assim que os mesopotâmicos aprenderam a assar o pão no início da prática da agricultura em mais ou menos 8000 ac. Porém, estima-se que no périodo paleolítico (10000 a 12000 anos atrás) já havia suco de fruta fermentado (vinho), grãos fermentados (cervejas) e mel fermentado (hidromel). Seis milênios atrás, os sumérios, um próspero povo que baseava sua economia na irrigação, agricultura e comércio, teve seu desenvolvimento correndo em paralelo com o uso de vinho e cerveja. Mais tarde, embora o Antigo Testamento já condenasse o alcoolismo, o mesmo não ocorria com o álcool(1).
Apesar dos problemas causados pelo excesso do consumo de álcool serem conhecidos desde a antiguidade, o primeiro hospital a cuidar de alcoolistas só foi aberto em 1841 em Boston, EUA1. Somente em 1960, Jellinek introduz o conceito de doença do alcoolismo e assim tira o problema da área criminal para então coloca-lo na área médica 2. Apenas em 1976, Griffith Edwards descreve a Síndrome de Dependência do Álcool. Esta seria uma progressão gradual de beber socialmente para a dependência(2).

Mas, a partir de que momento podemos chamar alguém de alcoolista, alcoólatra ou etilista ou dependente de álcool?
O Trabalho de Griffith Edwards contribui de forma decisiva na contemporaneidade diagnóstica na área das farmacodependências. Cabe ressaltar que um diagnóstico acurado é fundamental para indicar um prognóstico e ajudar a selecionar o melhor tratamento(3).
Portanto, após várias tentativas de estabelecerem-se critérios diagnósticos que pudessem ajudar os profissionais de saúde a identificar pessoas dependentes de álcool, é a partir do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais em sua quarta edição (DSM IV)(4) (manual de critérios diagnósticos americano usado para pesquisa no Brasil) de 1994 e do CID 10(5) (Código Internacional de Doenças, oficialmente adotado no Brasil) de 1993 que finalmente se estabelece um sistema universal e abrangente para o diagnóstico das farmacodependências. Ambos os critérios são muito semelhantes e compartilham a necessidade do indivíduo preencher alguns itens que tem que ocorrer no mesmo período de 12 meses(6).

DIAGNÓSTICO DE SÍNDROME DE DEPENDÊNCIA DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS SEGUNDO O CID-105
Obs: o diagnóstico é feito quando 3 ou mais dos critérios a seguir forem preenchidos em algum momento durante o último ano:
1. UM FORTE DESEJO OU SENSAÇÃO DE COMPULSÃO PARA TOMAR A SUBSTÂNCIA;
2. PREJUÍZO NA CAPACIDADE DE CONTROLE DE USO, NO QUE SE REFERE A INÍCIO, FIM OU QUANTIDADE;
3. A SUBSTÂNCIA É UTILIZADA COM A FINALIDADE DE ALIVIAR SINTOMAS DE ABSTINÊNCIA E O INDIVÍDUO ESTÁ CONSCIENTE DE QUE TAL ESTRATÉGIA É EFETIVA;
4. SÍNDROME DE ABSTINÊNCIA;
5. EVIDÊNCIA DE TOLERÂNCIA, ISTO É, SÃO NECESSÁRIOS AUMENTOS DE DOSES PARA QUE SE CONSIGA OS MESMOS EFEITOS ANTES PRODUZIDOS POR DOSES MENORES;
6. ESTREITAMENTO DO REPERTÓRIO DE USO DA SUBSTÂNCIA. POR EXEMPLO, TENDÊNCIA A BEBER DA MESMA MANEIRA EM DIAS DE SEMANA E FINAIS DE SEMANA, A DESPEITO DO QUE SEJA CONSIDERADO SOCIALMENTE ACEITÁVEL;
7. ABANDONO PROGRESSIVO DE OUTROS PRAZERES OU INTERESSES EM PROL DO USO DA SUBSTÂNCIA;
8. MANTER O USO A DESPEITO DE EVIDÊNCIA CLARA DE CONSEQÜÊNCIAS PREJUDICIAIS (p.ex., lesão hepática), SOCIAIS (p.ex., perda do emprego) OU PSICOLÓGICAS (p.ex., estados depressivos).
É interessante notar que nem a quantidade nem a freqüência de consumo fazem parte dos critérios diagnósticos, devido à pela imensa variabilidade individual, o que realmente conta é o grau de prejuízo que o indivíduo tem pelo consumo do álcool.

O alcoolismo é um problema freqüente?
Infelizmente sim, dados dos EUA de 1991 e de 1997 apontavam aproximadamente 13% dos americanos com dependência de álcool 6.
No mais recente e importante levantamento epidemiológico brasileiro, conduzido em 108 cidades com mais de 200 mil habitantes, foi encontrada uma prevalência de 12,3% de dependentes de álcool. O dado mais preocupante desta pesquisa é o achado de que na faixa de 12 a 17 anos, 11,4 % dos meninos e 8,9% das meninas já eram dependentes de álcool(7).

Quais são as causas do alcoolismo?
Isto é, o que leva uma pessoa que bebe um vinho em um jantar, uma caipirinha na praia ou uma cerveja com os amigos em um bar a tornar-se um dependente de álcool? As adições em geral e o alcoolismo em particular são transtornos multifatoriais genética e ambientalmente influenciados8. Parecem existir muitos efeitos genéticos no desenvolvimento de uma fragilidade para o alcoolismo, desde a possibilidade de esta herança ser direta até indireta, isto é, o sujeito herdaria determinados traços de personalidade (p.ex. agressividade) que facilitariam o surgimento do alcoolismo (9,10).
Alguns autores afirmam que 50% da probabilidade de um indivíduo tornar-se alcoolista seria determinada geneticamente e esta relação seria maior para o alcoolismo severo e de início precoce(8).

Quais são as conseqüências do beber excessivo?
O alcoolismo associa-se com acidentes de trânsito, violência doméstica, Síndrome Fetal pelo uso de Álcool entre outros11. O custo social e para a saúde é extraordinariamente alto. Nos EUA, esta doença foi a terceira causa de morte em 2000 e há uma relação direta entre o consumo excessivo de álcool e 60 condições médicas(12).
Destaca-se que o álcool é um depressor do sistema nervoso central e em doses suficientemente elevadas torna-se um anestésico. O uso excessivo de álcool afeta quase todos os sistemas corporais. Vejamos o que acontece com a progressão do consumo alcoólico mesmo em indivíduos normais(3):

NÍVEL CRESCENTE DE ALCOOLEMIA (mg/100 ml)

EFEITOS ESPERADOS

20-99

COORDENAÇÃO REDUZIDA, EUFORIA

100-199

ATAXIA, RACIOCÍNIO BAIXO, JULGAMENTO PREJUDICADO, HUMOR INSTÁVEL

200-299

MARCADA ATAXIA E FALA ARRASTADA, JULGAMENTO PREJUDICADO, HUMOR INSTÁVEL, NAÚSEAS E VÔMITOS

300-399

ANESTESIA, LAPSOS DE MEMÓRIA, HUMOR INSTÁVEL

 400 OU MAIS

INSUFICIÊNCIA RESPIRATÓRIA, COMA E MORTE


O detalhamento das complicações psíquicas e físicas causadas pelo alcoolismo daria material suficiente para vários livros, mas para citarmos algumas: Delirium Tremens, Alucinose alcoólica, Síndrome fetal pelo uso de álcool, Demência alcoólica. Efeitos no fígado, pâncreas, sistema hematológico, sistema cardio-vascular (cardiomiopatia, aumento de pressão arterial), sistema neurológico (polineuropatias), sistema imunológico (infecções), sistema reprodutor etc(3).

O alcoolismo acomete da mesma forma a todos?
O alcoolismo é uma síndrome heterogênea que acomete diferentemente diversos subgrupos de indivíduos como mulheres, idosos e adolescentes13,145. A caracterização destes subgrupos foge do escopo deste artigo, mas será objeto de discussão nas próximas edições.

Há especificidades do alcoolismo no ambiente de trabalho?
Cabe ressaltar que o alcoolismo se relaciona com aumento de absenteísmo, diminuição da produtividade, aumento do risco de acidentes de trabalho e aumento de violência no ambiente profissional(15).
A pesquisa atual procura correlacionar características especificas do trabalho com as características pessoais. Isto permitiria intervir precocemente e solucionar os problemas antes mesmo que ocorressem. Por exemplo, uma pesquisa americana encontrou uma forte relação entre condições adversas psicossociais no trabalho (considerando o equilíbrio esforço-recompensa) e alcoolismo para os homens. Já em mulheres, a relação com o alcoolismo se dava quando elas ocupavam cargos mais altos na hierarquia(16).

Como é o tratamento do alcoolismo?
Primeiramente cabe ressaltar que qualquer tratamento é melhor que nenhum tratamento. Em se tratando de um quadro tão heterogêneo era de se esperar que houvesse várias opções terapêuticas, mas sabemos que nenhuma é necessariamente melhor que a outra, podendo inclusive ser complementares. A ciência atual procura identificar que tipo de paciente se favoreceria de que tipo de tratamento, permitindo com isto, uma alocação mais eficaz dos recursos disponíveis(17).
Existem diferentes modalidades terapêuticas. Por exemplo, podem focar nas causas subjacentes do alcoolismo, nos fatores que mantém a dependência, nas conseqüências adversas do beber excessivo, no próprio comportamento de beber etc.
Entre as modalidades existentes de tratamento temos: psicoterapias individuais dinâmicas, psicoterapias grupais, terapias familiares, terapias cognitivo-comportamentais, reabilitação vocacional, comunidades terapêuticas, “halfway houses”, grupos de auto-ajuda, tratamentos ambulatoriais, internações de curto prazo, internações de longo prazo, entre outros. Estes tratamentos podem acontecer de forma isolada ou integrados em abordagens terapêuticas multiprofissionais que muitas vezes incluem avaliação periódica da efetividade das abordagens terapêuticas propostas.



Trabalho publicado originalmente na Revista Protege. Patrícia B. Hochgraf é médica psiquiatra, Coordenadora do Programa de Atenção à Mulher Dependente Química (PROMUD) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-HC-FMUSP) e Doutora em Psiquiatria pelo Departamento de Psiquiatria do HC-FMUSP). Correspondência: Rua Piracuama 280 cj93. Perdizes – São Paulo – SP – Brasil. CEP 05017-040. hochgrafp@uol.com.br


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Goodwin DW, Gabrielli Jr WF. Alcohol: Clinical Aspects. In Lowinson JH, Ruiz P, Millman RB, Langrod JG. Substance Abuse: a Comprehensive Textbook. William&Wilkens, Baltimore, 1997.
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3. Scuckitt M. Abuso de Álcool e Drogas. Artes Médicas, Porto Alegre, 1991.
4. American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. Fourth Edition. APA, Washington, 1994.
5. World Health Organization . International Statistical Classification of Diseases and Related Health Problems. Tenth Revision. WHO, Geneve, 1993.
6. Bucholz K. Nosology and Epidemiology of Addictive Disorders and their Comorbidity. In: Miller NS, Swift RM. Addictive Disorders. The Psychiatric Clinics of North America, 22 (2), 221-240, 1999.
7. Carlini EA. II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil:2005. SENAD, Brasília, 2007.
8. Enoch MA, Goldman D. Genetics of alcoholism and substance abuse. In: Miller NS, Swift RM. Addictive Disorders. The Psychiatric Clinics of North America, 22 (2), 289-300, 1999.
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10. McKim WA. Drugs and Behavior. Pearson, New Jersey, 2007.
11. Busco M. Alcohol Disorders Common, Largely Untreated Among American Adults. Medscape Medical News, 2007.
12. Bohn MJ, Swift RM. Prevalence and Impact of Alcohol Dependence. Journal of Clinical Psychiatry, 67 (14), 6-13, 2006.
13. Hochgraf P. Alcoolismo feminino: comparação de características sócio-demográficas e padrão de evolução entre homens e mulheres alcoolistas. São Paulo, Tese (doutorado). Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, 1995.
14. Brasiliano S. Comorbidade entre dependência de substâncias psicoativas e transtornos alimentares: perfil e evolução de mulheres em um tratamento específico para dependência química. São Paulo, Tese (doutorado). Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, 2005.
15. Shepard DS, Larson MJ, Hoffmann G. Cost-effectiveness of Substance Abuse Services: implications for Public Policy. The Psychiatric Clinics of North America, 22 (2), 385-400.
16. Head J, Stansfeld SA, Siegrist J. The Psychosocial Work Environment and Alcohol Dependence: a prospective study. Occupational and Environmental Medicine, 61, 219-224, 2004.
17. Edwards, G.; Marshall, E.J.; Cook, C.C. O Tratamento do Alcoolismo. Artmed, São Paulo, 1997.